* O FEMINA VOX 25 E A JOVEM GUARDA: um eterno verão


                                                                          (imagem: pixabay)
(continuação)

UM PASSADO RE-HABITADO, RESSIGNIFICADO E REENCENADO 

Como fora dito anteriormente, a retomada das atividades do Femina Vox 25 de Porto Alegre teve, como estratégia central, a recordação de um passado que ainda reverberava positivamente em suas subjetividades. Partimos do pressuposto de que voltar a um tempo feliz de suas vidas poderia ser um estímulo para a superação dos grandes desafios impostos pela pandemia e pelo modo como a peste havia transformado o cotidiano dessas cantoras. Considerando o perfil etário do grupo, o repertório da Jovem Guarda parecia ser uma escolha adequada. A proposta foi bem recebida e os ensaios (à distância) foram iniciados. Poucos meses após o reinício, havia chegado o momento de levarmos os primeiros resultados do novo trabalho "ao palco”. 

A pandemia, contudo, havia também transformado esse espaço. O palco da era do confinamento demandava a ocupação e o domínio de outros recintos, regidos por outras lógicas, por estéticas muito próprias, por modos peculiares de execução e transmissão. Para começar, o espaço doméstico de cada uma delas se tornou, por si só, uma potência visual a ser explorada. Além disso, as tecnologias digitais proporcionavam um universo de ferramentas de performance e aportes de efeitos visuais e sonoros. O palco fixo, estático e unidimensional da esfera física se desdobrava em um caleidoscópio de possibilidades dentro do espaço cibernético. Não faria, então, sentido uma mera transposição dos procedimentos de performance de um palco presencial para seu correlato virtual. Experimentar o universo da internet era preciso e estávamos dispostos a isso. 

Visando mantê-las no mesmo estado de flow que ocorrera durante a produção do vídeo O ritmo da chuva, decidimos criar, para esse novo espaço de performance, o projeto Jovens tardes de domingo. O empreendimento contemplaria entre 9 e 12 canções da Jovem Guarda, registradas no formato de vídeos-mosaicos para a plataforma youtube. Produziríamos um “show dilatado”, cuja duração total seria de, aproximadamente, dois anos. A cada dois ou três meses, uma nova canção seria colocada na plataforma. E assim foi. O lançamento de cada vídeo era acompanhado por um público cativo, que reunia familiares, amigos, pessoas da comunidade coral e público em geral. Cientes da regularidade bimestral do projeto, muitos aguardam, com expectativa, o lançamento do próximo vídeo. 

Para uma melhor concepção do projeto, procuramos, inicialmente, entender o impacto que a Jovem Guarda tinha nos afetos e subjetividades dessas mulheres. Sabíamos que tal conhecimento era fundamental para a construção imagética dos vídeos: 

"Quando tu lançaste a ideia da Jovem Guarda, eu adorei. Ela fez parte de minha adolescência e juventude. As gurias da minha quadra, de manhã, iam à missa das dez. Combinávamos, então, qual o filme que iríamos assistir à tarde [...] Íamos de bonde ao centro. Voltávamos para casa para vermos Roberto Carlos e sua turma. Era uma brasa, mora!!" (VERA) 

A exemplo da fala acima de Vera, as memórias delas eram, em sua grande maioria, esfuziantes e saudosistas. Para Maria Helena, o repertório da Jovem Guarda lhe trazia sensações “de poder, de desafio, de afronta”. Sentimentos de transgressão e utopia ainda ressoavam fortes em sua memória: “Eu acreditava que mudaríamos o mundo com as músicas da Jovem Guarda”, acrescenta. 

Para Elza, a jovem guarda foi um período de "muitas alegrias, risos e cores. São lembranças que fazem bem à alma. Era um eterno verão!”, disse ela. Para Zenira, cantar essas canções foi “como trazer a juventude de volta aos dias de hoje”. A contralto ainda recorda os domingos em que escutava essas canções no rádio à pilha, sentada em bancos de praças: “Aquelas tardes”, disse ela, “pareciam intermináveis”. 

Para Célia, os hits da Jovem Guarda lhe afloravam “sentimentos de nostalgia, saudades de uma época bem vivida”. São centrais, em suas recordações, a “ideia de juventude, de grupos de amigos, de compromissos escolares, de muitas risadas, alegrias e de dores existenciais próprias daqueles anos de formação”. As canções reportam Célia às “primeiras relações amorosas, platônicas e inseguras”. Para Naide e Miriam, as melodias as remetiam de volta a um tempo de "esperas impacientes"; à “ânsia de completar os 18 anos”, quando poderiam, finalmente, ter acesso “aos bailes e aos namoricos” que as amigas e irmãs mais velhas já usufruíam. 

Nem todos os depoimentos, contudo, tiveram o mesmo entusiasmo inicial encontrado na grande maioria das mulheres: “Eu não gostava da maioria das músicas da Jovem Guarda. Naquela época, eu preferia a Bossa Nova”, disse Elza. No entanto, as impressões negativas daquela "Elza do passado" se tornaram menos assertivas para esta Elza, esta que se narra no presente. A equação entre ambas - a pessoa do passado e cantora do presente - levaram-na a ressignificar o repertório que um dia desprezou: “Eu não gostava da jovem guarda, mas, mediante esses belos arranjos e com um novo olhar para aquela fase, passei hoje a gostar das músicas que não gostava antes”. A memória daquele passado ressurgiu, para a Elza do presente, não na forma "pura", como ela, de fato, o vivera. O contexto de seu presente somado a um possível imaginário de futuro - lembrando Walter Benjamin -  ressignificaram aquele passado, trazendo-o, de volta ao presente, com "um novo olhar para aquela fase".

Embora entendermos o significado 
da Jovem Guarda para essas mulheres 
fosse medida importante, faltava-nos, 
ainda, algo fundamental: 
o acesso ao rico acervo memorial delas. 

Para nossa sorte, o momento era propício, pois o contexto da pandemia parecia estimular o afloramento dessas memórias, conforme relata Ana: "O cancelamento dos encontros presenciais e o confinamento em nossas casas favoreceu a busca por nossas memórias, por momentos vividos em nossas juventudes. O trabalho solitário nos estimulou a entrar com mais força nessas memórias". (ANA) 

Com o intuito de dar vasão a essas memórias, foram propostos, a elas, alguns encontros de reminiscências. A intenção era que as cantoras narrassem, umas às outras, passagens de suas juventudes que tivessem alguma relação com os temas de cada uma das canções do repertório. Assim, a melodia “É proibido fumar”, por exemplo, estimulou-as a falar da cultura do cinema das décadas de 60 e 70, do modo como elas a vivenciaram ou lembravam. A proposta se mostrou produtiva. O vasculhar coletivo nos debris desse passado trouxe à luz um conglomerado de memórias queridas, que foram determinantes para a construção dos vídeos. No cortejo das imagens que surgiam, elas reencontraram os “brotos” com os quais “flertavam” nas filas do cinema; os “carangos dos coroas” que as levavam às matinés; os cine-teatros de bairro que frequentavam com a patota; os “boleros de mangas três-por-quatro” e os “tubinhos” e “conjuntos de ban-lon” que vestiam; as marcas dos perfumes que as amigas mais “bidus” usavam. 

As lembranças trouxeram de volta, também, seus “galãs-pães” favoritos, as atrizes "mais prá-frentex”, as trilhas sonoras “brasa-mora”, os filmes românticos mais inesquecíveis. Emergiam, também, figuras emblemáticas como a do “baleiro”, o “pipoqueiro” e o “lanterninha”, personagens de uma cultura que sucumbiu à fome de modernidade e ao avanço dos cinemas de shopping-centers. Os encontros de reminiscências se tornaram muito estimados e rotineiros. A possibilidade de comungar as lembranças mais queridas entre si as deixava alegres, saudosas, revigoradas, emocionadas, com determinação para seguir em frente: 

“Essas são lembranças de momentos de vida intensa, que nos permitem, hoje, ser pessoas com condições mais favoráveis para dissimular os momentos de solidão e isolamento”, ressalta Ana.

Revigoras, então, pela arqueologia dos próprios afetos, 
elas partiram 
à procura de testemunhos desse 
tempo perdido e recém-redescoberto. 
Reviraram gavetas, alcançaram fundos 
de armários, vasculharam sótãos e garagens à cata 
de relíquias que as ajudassem 
na construção 
das imagens de seus vídeos-mosaicos. 

Cada um desses vestígios do tempo reencontrado portava, em si, o potencial de despertar profundas emoções: 

"Para a construção dos vídeos temáticos, utilizei roupas e objetos que tinha em casa, como discos antigos, fotos minhas da época e cartas. Para as cenas do "Devolva-me", fui mexer com todo um material que trouxe, à tona, muitas memórias: algumas alegres, outras tristes. Algumas vezes eu ri. Em outras eu chorei. Chorei revendo fotos antigas de queridos que já não estão mais aqui. Chorei no momento em que encontrei cartas escritas por meu pai à minha mãe. Tudo isso são memórias do tempo em que éramos jovens. Para a preparação de cada novo vídeo, todas traziam suas experiências de como foi ser jovem naquela época. (ELZA) 

Assim, discos, fotos, cartas, roupas e outros objetos de uso pessoal foram resgatados por elas e levados aos vídeos. Esse arsenal de objetos memorialísticos as lembrava como era “ser jovem naquela época”. No entanto, essas cápsulas do passado tinham também o poder de lembrá-las de que ainda era (e é) possível – e necessário - desafiar as vicissitudes de um tempo presente que, ao se impor sobre elas, as convida novamente a transgredir, a se abrir para um futuro incerto, a se deixar levar por uma experiência que as tomou de assalto e desestabilizou todas as certezas reconfortantes de mundo. 

Embora o sonho daquele “eterno verão”, de “tardes intermináveis” e devaneios utópicos, tenha, ao final, desvelado uma fantasia juvenil, elas aprenderam que tais anseios não foram em vão. A maturidade, afinal, trouxe a ciência de que alcançar o eterno é ainda possível em suas memórias e a noção de que mudar o mundo é plausível mediante a mudança de seus olhares sobre este. E o contexto da pandemia, inequivocadamente, lhes confirmou esse aprendizado. 

Embora a nova experiência revelou-se árdua, as mulheres do Femina Vox 25 de Porto Alegre mostraram, a cada vídeo, que ainda ousam, transgridem e “chegam lá”: 

"Continua sendo bastante difícil, mas, quando vejo o vídeo pronto, fico emocionada. Pode parecer exagero, mas choro de emoção por ter conseguido. Nós chegamos lá". (VERA) 

"Tem sido uma enorme transgressão. Estou me sentindo muito ousada". (CÉLIA)

(continua no texto "Em busca de um tempo perdido")
(imagem: pixabay)

Trecho 3 do artigo: "Temporalidades e memória em uma experiência coral durante a pandemia", de Luciano Lunkes e Zilá Bernd.




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