* O FEMINA VOX 25 E A JOVEM GUARDA: O ritmo de uma nova era

                                                                             (imagem: pixabay)
(continuação


"Aos poucos, descobrimos outras maneiras de nos relacionar, de nos ver, de compartilhar nossas dificuldades e angústias e nos fortalecer como seres humanos engajados em um objetivo comum: o de cantar. Nossos encontros passaram a significar apoio e incentivo emocional para enfrentar o isolamento social que a situação requeria. Mais uma vez a música nos uniu, dando-nos incentivo a vencer os novos desafios que a situação pandêmica exigia. Tivemos que buscar subsídios técnicos e emocionais para honrar nosso lema, que é o de fazer, da música, um elo de união e apoio em prol de um convívio feliz entre nós" (ANA). 

"A transição sem aviso precedente, do mundo real para o virtual, foi um grande sofrimento". (CÈLIA) 

"A tecnologia exigia paciência e superação, para quem vive sozinha". (MIRIAM) 

Foi proposto que a música da retomada fosse “O ritmo da chuva”, melodia do grupo americano The cascades, que se tornou um sucesso, no Brasil, na versão de Demétrio. Para as cantoras, a música arrebatava ótimas lembranças de suas mocidades. Ficaram felizes com a escolha. As que ainda resistiam à ideia de “cantar para um aparelho” foram, aos poucos, deixando-se levar pela proposta e se engajando com a maioria:

"Não vou cantar. Fico um ano sem cantar. Me nego a cantar para um aparelho. Aquela minha determinação inicial, porém, não durou uma semana. [...] Compartilhar a minha insegurança, reconhecer as limitações, sentir o entusiasmo do grupo e receber tanto incentivo dos mestres foi o que me fez acreditar que podíamos" (DULCE). 

A resistência ao ambiente online era compreensível. A atividade coral, até então, demanda um conjunto consideravelmente modesto de ações e necessidades. Em seu nível material mais básico, ela solicitava apenas quatro agentes: uma sala de ensaio, um instrumento musical, partituras e um técnico. No entanto, a esfera virtual complexificou consideravelmente essa realidade. Para cada instância do fazer coral presencial, foi necessário pensarmos um conjunto de correspondências no ambiente online, que tivesse o potencial de suprir, mesmo que precariamente, os requisitos necessários para a viabilização desse ofício à distância. As dimensões do tempo e do espaço teriam, também, que ser totalmente reconfiguradas, impactando, assim, em uma série de desdobramentos. 

A transposição da sala de ensaio 
convencional para seu correlato virtual, 
por exemplo, desdobrou o 
“cantar juntos em um único espaço físico e ao mesmo tempo” 
em uma multiplicidade de outros ambientes, temporalidades 
e ações dentro do espaço digital. 

Cada nova ação demandava um domínio tecnológico que, em um primeiro instante, estava acima das habilidades das cantoras. Contudo, somente a aglutinação de várias ferramentas digitais supriria, a contento, o papel da sala de ensaio física, tão central à atividade coral. Para compor esse novo recinto, recorreu-se, em primeiro lugar, às plataformas zoom, google meet e jitsi-meet. Elas permitiram o contato sincrônico dos técnicos com as mulheres. Através dessas plataformas, o repertório (previamente estudado) seria acompanhado semanalmente, de forma individual. Correções e sugestões de melhorias para o encontro seguinte eram feitas com base no resultado que cada uma das cantoras apresentava. Isso, porém, não supria todas as necessidades da sala de ensaio. 

Havia, ainda, outras demandas a considerar e, para suprí-las, recorreu-se ao whats app e ao correio eletrônico (e-mail) para anexá-los ao aparato de ensaio. Para esses ambientes, foram criados repositórios, que tinham, por objetivo, armazenar e disponibilizar, de forma permanente, as partituras e os registros de áudio e vídeo com execuções de todas as vozes de cada peça do cancioneiro. Foram, também, disponibilizados vídeos tutoriais para o auxílio no manuseio básico da tecnologia envolvida na prática online

Contudo, havia ainda a questão central do delay. A defasagem do tempo existente nessas plataformas de interação inviabiliza a sincronia da polifonia de vozes, sabotando o cantar coletivo. O problema foi contornado, em parte, com a inclusão de um segundo aparelho de celular (ou tablet). A solução, contudo, complexificou ainda mais o ensaio online. A adoção do segundo aparelho celular permitiu que tanto a base instrumental de cada música quanto a voz de cada cantora partissem de um mesmo ponto de transmissão, corrigindo, assim, o descompasso temporal que ocorre quando ambos partem de diferentes fontes. Era possível, desta forma, escutar ambas as fontes ao mesmo tempo e de forma sincronizada. Contudo, havia ainda o problema da interação harmônica entre todas as diferentes vozes, oriundas dos diferentes ambientes domésticos em que se encontravam as cantoras. Embora de forma precária, o whats app atendeu o problema ao viabilizar a circulação de duetos, trios e quartetos entre elas, que gravavam suas próprias vozes sobre as vozes das outras e compartilhavam essas gravações para as demais ouvirem. 

Toda essa "engenharia" criada para os ensaios online exigiu, portanto, a existência de um aparato tecnológico doméstido, disponível em cada uma de suas residências, como: impressoras, fones de ouvido, microfones de captação, celulares extras, tablets, pendrives, entre outros. Nos primeiros meses da retomada, o manuseio da maquinaria gerou muita frustração e  ansiedade: 

"Para mim, não muito chegada às tecnologias virtuais, foi um desafio que exigiu, além de força de vontade, o auxílio de familiares mais capacitados no uso dos recursos do computador, do celular e da fotografia". (ANA) 

"Em vários momentos do primeiro trabalho pensei em desistir por achar que não iria conseguir" (CLÁUDIA). 

"Com as aulas online, precisei aprender a utilizar diversas funções que o celular oferece. Foram sendo aprendidas de acordo com a necessidade e com o auxílio das colegas do grupo que já dominavam o uso destas novas tecnologias. Foi bem difícil, mas tudo isto resulta em saúde mental, psicológica, emocional" (ELZA) 

A parafernália de sincronizações, aportes e comandos as exauria, exigindo paciência e obstinação. Para a produção do primeiro vídeo-mosaico, meses mais tarde, as complexidades aumentaram consideravelmente. A gravação desses vídeos - uma novidade para boa parte dos coros na época - exigia conhecimentos básicos sobre registros de som, de imagem e técnicas de performance. Para isso, foram criadas oficinas visando dotá-las de um conjunto de habilidades, como princípios básicos de acústica, de enquadramento na tela, de estabilização de imagens, de incidência de luz, de configurações de som e imagem do celular, de manuseio do google drive, de formas de salvamento e de envio de seus arquivos gravados. Foram, também, trabalhadas noções referentes à composição de cenário, figurino, maquiagem e gestual; de desempenho em frente às câmeras e outros. A sobrecarga de tarefas era elevada: 

A gravação do primeiro vídeo exigiu que nos familiarizássemos com uma ‘parafernália’ de equipamentos que deveriam funcionar simultaneamente. Foi muito difícil”, desabafou Ana. 

A falta de intimidade com os procedimentos de gravação levava as cantoras a regravar a mesma faixa dezenas de vezes, até obterem um resultado considerado satisfatório: “nenhum dos vídeos foi absolutamente tranquilo. Em todos, precisei repetir muitas vezes a gravação, tanto do áudio, quanto do vídeo”, afirmou Célia. 

Várias delas, contudo, recorreram às suas redes de solidariedade, aos familiares e, principalmente, às gerações mais novas para o auxílio no manuseio da tecnologia: “Eu sempre pude contar com a ajuda de um sobrinho bem jovem, o que foi uma grande vantagem”, disse Célia. 

Elza e Cláudia acrescentaram: "Moro só. Para o vídeo“O Ritmo da Chuva”, eu precisei filmar uma sombrinha girando. Não consegui fazê-lo sozinha. Fui até a portaria do prédio e pedi auxílio ao porteiro, que girou a sombrinha enquanto eu gravava. Enviei, a ele, o vídeo pronto. Tempos depois ele comentou: 'Cada vez que olho este vídeo, penso: Eu estou aqui’”. (ELZA) 

"Foi uma experiência muito boa quando minha neta me viu com a peruca. Ela nem sabia o que era peruca. Depois ela e minha filha me ajudaram na maquiagem. [...] Fui para a casa de minha mãe, pois tínhamos que gravar som e imagem com luz natural e sem barulhos. Ela me emprestou o seu celular, por que era preciso dois aparelhos. Ela ouvia as gravações e comentava: nesta parte desafinaste um pouco. Assim, íamos nos desafiando, ocupando o tempo e realizando um novo trabalho". (CLÁUDIA) 

No entanto, a prática coral no espaço virtual era, em parte, 
uma atividade remota e solitária. 
A natureza insulada do cantar coletivo na era do confinamento 
causava-lhes uma certa estranheza e acabrunhamento: 

Sinto muita dificuldade na frente da câmera, pois não tenho ninguém para me auxiliar. Estes momentos de cantar e gravar são individuais, mas o resultado é coletivo, do esforço de um trabalho em grupo.”, afirma Cláudia. “No começo, parecia impossível cantar sem o apoio da colega ao nosso lado, ouvir a sua voz”, disse Zenira. “Foi muito, muito difícil. Sentia falta da parceria”, acrescentou Naíde. “Não havia ninguém ao lado a quem recorrer em momentos de insegurança. Mas o desafio precisava ser superado", desabafou Miriam. “Foi um choque ouvir a própria voz gravada”, disse Célia. “Tive que me ouvir sozinha e me reconhecer, quando só o que estava acostumada a ouvir era um coral inteiro. Não tinha noção da minha parte nesse corpo”, afirmou Maria Helena. “Ouvir a minha própria voz e ver a minha imagem em vídeo provocou momentos de insegurança”, diz Aguida. 

Habituadas à tutela e comandos dos profissionais que organizavam o fazer musical nos ensaios presenciais, elas tiveram que assumir, nesse formato, parte desses comandos: “Todo o trabalho dependia de meu desempenho e de minha autoavaliação, antes de submetê-lo à crítica dos professores, que passaram a exigir maior dedicação e qualidade nas produções”, afirmou Ana. 

Sentia falta das entradas que o regente dá e dos vocalizes da professora”, disse Vera. 

Contudo, todas as incertezas, dissabores e desconfianças em relação à validade dos esforços que o trabalho online impunha sobre elas se dissiparam com o lançamento de O ritmo da Chuva, primeiro vídeo-mosaico do grupo, lançado quatro meses após a retomada dos ensaios. Estando elas mais familiarizadas com a tecnologia, os técnicos entenderam, passado o periodo inicial, que havia chegado o momento de propor-lhes esse novo desafio: 

"Quando se resolveu que faríamos o vídeo, criou-se, ali, uma meta, um objetivo, algo para fazer. Foi um alento. Isto se deu em um momento de muita incerteza, de falta de rumo. Foi muito prazeroso e gratificante [...] Quando o vídeo ficou pronto, foi uma luz. Adorei. [...] O mundo virtual também tem seus pontos altos e seria ótimo se fossem mantidos". (CELIA) 

"É muito gratificante ver o trabalho pronto e o esforço recompensado". (CLAUDIA) 

"Com o avanço no manuseio da tecnologia fui me sentindo realizada”. (ANA) 


Para Larossa Bondia (2002), a consciência da experiência surge no momento em que damos sentido ao que somos e àquilo que nos acontece. Enquanto sujeitos da experiência, essas mulheres aceitaram e acolheram o que lhes aconteceu. Abertas ao desconhecido, elas se puseram pacientemente à prova e buscaram, na oportunidade, o componente fundamental da experiência, que é a capacidade de se deixar formar e transformar. Desalojadas e temerosas – mas apaixonadas – elas saíram de um lugar para se encontrar em outro, assumindo os riscos das jornadas dos destinos incertos, transformando as oportunidades em experiências, criando e depurando sentidos. Pacificadas, então, com a tecnologia, partiram em direção a uma nova tarefa - a de repovoar outras canções de suas juventudes. 

"Hoje sobram técnica e habilidade para montar um estúdio em casa, com mesas, bancos, livros; prender, com fita adesiva, o celular na janela; buscar a melhor luz, o melhor ângulo; "flechar" a câmera. Cantar para um aparelho já não me desespera mais. O sentimento, hoje, é de orgulho e gratidão. Sou grata ao grupo, sou grata aos mestres, por sempre acreditarem". (DULCE)


(continua no texto "Um eterno verão", que tratará dos caminhos trilhados pela memória para a construção do vídeo "O ritmo da chuva" 

                                                                     (imagem: pixabay.com)


Trecho 2 do artigo: "Temporalidades e memória em uma experiência coral durante a pandemia", de Luciano Lunkes e Zilá Bernd.
                                             



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