* O FEMINA VOX 25 E A JOVEM GUARDA: Temporalidades e memória em uma experiência de canto coral durante a pandemia



                                                                      (imagem:pixabay)


(Autores: Luciano Lunkes & Zilá Bernd)


INTRODUÇÃO 

Em uma época em que muitos corais silenciaram as vozes, paralisando por tempo indeterminado ou, ainda, extinguindo-se de forma permanente, o Femina Vox 25 de Porto Alegre foi um dos grupos que aceitou entrar na zona do desconhecido, participando de forma ativa no surgimento de uma nova era do canto coral. E a memória, nessa experiência, se tornou uma ferramenta fundamental de resiliência e reinvenção. 

Jorge Larossa (BONDIA, 2002, p. 21) afirma que toda experiência é travessia para outra existência. Acima de mero acontecimento ou escolha deliberada, a experiência é, para ele, uma ocorrência que nos toma de sobressalto, nos desacomoda, nos toca e nos transforma. Nesse sentido, o sujeito não realiza uma experiência; ele a sofre. Para Larossa, a experiência não ocorre ao indivíduo inteirado e cônscio, empoderado por convicções acerca de si e das circunstâncias que o rodeiam. Ela acontece, de fato, ao sujeito que, desalojado de sua zona de conforto, é levado a trilhar caminhos desconhecidos, em direção a destinos incertos, imprevisíveis. Fragilidade, hesitação e transgressão são, nessa ótica, componentes vitais da experiência. 

O presente texto se propõe a relatar uma experiência transgressora, 
surgida em um contexto de grande fragilidade, desorientação e hesitação. 

A ocorrência da pandemia desnorteou um grupo de mulheres, levando-as a trilhar um caminho desconhecido, rumo a um destino inesperado, embora surpreendente. Pretendemos contar, nas páginas que seguem, como a emergência abrupta da pandemia afetou o cotidiano do coral Femina Vox 25 e de tantos outros grupos, transformando dimensões de tempo, espaço, matéria, representações e subjetividades. 

Nas próximas seções, apresentamos um relato das experiências vividas por esse grupo de mulheres durante a epidemia. Propomos, também, uma reflexão que toma, como base, questões da temporalidade (chronos e kairós) e da memória. Em um primeiro momento (O ritmo de uma nova era), focaremos no modo como a dimensão acrônica e multiespacial da esfera digital desestabilizou o cantar delas, desacomodando práticas sedimentadas, invalidando certezas, impondo outras lógicas e sentidos que suscitaram sentimentos carregados de dúvida, ansiedade e frustração. Falaremos das principais complexidades e barreiras que o manuseio da tecnologia impôs sobre esse grupo de senhoras da terceira idade. Em seu aspecto mais luminoso, falaremos também das vantagens incontestáveis que a prática coral à distância acabou proporcionando ao Femina Vox 25. Evidenciaremos que, em seu desfecho, a tecnologia viabilizou horizontes mais profusos, caleidoscópicos e inusitados, até então, inimagináveis. 

Na segunda parte (“O eterno verão: Um passado re-habitado, ressignificado e reencenado”), o foco recai sobre o protagonismo da memória enquanto antídoto à procrastinação e, quiçá, à possibilidade de extinção do grupo frente à avalanche de sentimentos sombrios, impostos por situação tão singular como a pandemia. 

O material empírico, que serve como fundamento para os relatos do presente texto, é composto de três fontes, que são: a) o testemunho de um dos autores do presente texto, que é, também, regente do grupo; b) três dentre os vídeos que foram produzidos pelas cantoras durante o período de confinamento (“Ritmo da chuva ”, “Devolva-me” e “É proibido fumar”); c)  depoimentos das integrantes, recolhidos no dia 24 de maio de 2021, quatorze meses após o início da pandemia. 

As perguntas que embasaram seus depoimentos foram as seguintes: 

1. Como se deu, para você, a passagem do ensaio presencial para a experiência de cantar online? 

2. A temática da Jovem Guarda tem algum significado especial para você? Como é revisitar um período que você viveu 50 anos atrás? Que memórias, sentidos e sentimentos essa experiência lhe traz à tona? 

3. No processo de construção dos vídeos temáticos, onde você recorreu para buscar roupas e objetos daquela época que compuseram as cenas? Elas lhe trouxeram alguma(s) memória(s) em particular?

Para esse artigo, foram tomadas algumas das respostas mais expressivas desse conjunto dos depoimentos. 

A experiência no âmbito do presente capítulo será relatada pelas lentes da temporalidade (kronos e kairós), da memória social e da memória cultural. Alguns dos principais teóricos sobre os quais debruçaremos nossas reflexões são: Jorge Larossa Bondia, que aborda a questão da experiência enquanto deslocamento e travessia (encontrando, no sujeito, seu território de passagem); Deleuze, Peter Pál Pelbart e Marchesini, que discutem questões relativas aos sentidos do tempo (nos auxiliando no desvendamento dos processos de rememoração envolvidos nessa nova experiência coral); Maurice Halbwachs, Pierre Ouellet e Aleida Assmann, cujos estudos sobre memória social e tempo foram de fundamental valia para o presente relato de experiência. 


(imagem: pixabay)


FEMINA VOX 25 DE PORTO ALEGRE: DE SUA FUNDAÇÃO ATÉ OS MOMENTOS INICIAIS DA PANDEMIA 

O coral Femina Vox 25 é um dos vários grupos artísticos do Centro Cultural 25 de Julho de Porto Alegre, entidade que surgiu em 1951 com o propósito de estreitar os laços da comunidade germânica no Rio Grande do Sul através da cultura. Fundado em maio de 2008, o grupo tem, como proposta central, a difusão do repertório popular brasileiro, arranjado para vozes femininas. Busca, ainda, o convívio social entre mulheres que têm, em comum, a paixão pelo canto coletivo e o desejo de exercê-lo. Atualmente, o grupo conta com 18 integrantes, situadas na faixa etária entre os 54 e 82 anos. Além das atividades inerentes à prática presencial - como ensaios semanais, performances em palcos, competições em concursos e ações que objetivam a captação de recursos -, as cantoras dedicam parte de seu tempo ao trabalho de cunho social, cantando em hospitais, clínicas geriátricas, asilos, escolas, creches, praças e outros espaços públicos. 

A realidade social, econômica e cultural é relativamente homogênea. Considerável parcela dessas mulheres encontra-se aposentada, possui formação superior e situação material estável. Enquanto espaço de convívio social e suporte psicoafetivo, o coral ocupa lugar central na vida de boa parte delas. Para Célia, por exemplo, o grupo é o seu “espaço de interação, de apoio psicológico e de preenchimento de tempo”, permitindo-lhe “criar e manter objetivos”. Para Maria Helena, estar no grupo “é prazeroso. Somos parceiras, solidárias, ainda que tenhamos situações em que o pavio da dinamite quase se acende”. Para Ana, uma das fundadoras, o Femina “foi consolidando, aos poucos, não somente o gosto pelo canto, mas tecendo laços de amizade muito fortes entre suas componentes”. Quando entrou em 2011, diz Vera, “foi a glória!!! Sempre adorei cantar”. 

O ano de 2020 despontou impondo severas mudanças na atividade coral. A irrupção da pandemia forçou os coros a interromperem, de imediato, suas atividades presenciais. É importante mencionar que, tradicionalmente, a atividade do canto coral é uma prática coletiva artesanal que pressupõe uma relação sensorial-sinestésica entre os participantes. Ela se faz viável, portanto, mediante a negociação coletiva dos sentidos da audição e da visão. No processo, cada cantor “tempera” suas emissões vocais com base em estímulos aurais e visuais que recebe do regente, dos músicos acompanhantes e dos demais participantes, que se encontram dentro de um mesmo ambiente físico e acústico. Sincrônica, uni-espacial e trans-sensorial, a atividade coral sempre foi invariavelmente presencial. 

A covid-19 emergiu 
sabotando esses elementos mais primordiais da atividade coral, 
inviabilizando a prática da forma como ela sempre fora exercida. 
Estarmos todos juntos, 
no mesmo espaço e ao mesmo tempo, 
tornou-se ato proibitivo, em especial para essa atividade, 
que apresentava um fator agravante:
os altos índices de contágio. 

Estudos científicos revelaram que a quantidade de aerossóis lançados no ambiente pela voz cantada era consideravelmente superior aos índices produzidos pela voz falada. Além disso, outros contratempos também recairam sobre os coros, afetando-os de forma determinante. Dentre eles, está a questão econômica. Ao prever dificuldades financeiras à frente, mantenedoras e patrocinadores deixaram de apoiar seus grupos por tempo indeterminado ou, ainda, de forma permanente. 

Enquanto grupo de terceira idade e de natureza independente (que subsiste dos recursos pessoais das cantoras e de ações sociais coletivas, que visam incrementar o fluxo de caixa), o Femina Vox 25 tornou-se especialmente frágil neste cenário. Com o confinamento, sentimentos de desânimo, solidão, depressão, ansiedade e medo em relação ao futuro e à perspectiva de uma finitude antecipada passaram a pautar suas ações. Os meses iniciais do surto inviabilizavam um ambiente emocional propício que as instigasse a prosseguir com as atividades do canto: 

Ficamos muito tristes, desanimadas, confinadas, inseguras”, diz Cláudia. “Com o advento da pandemia”, relata Ana, “ficamos inicialmente entristecidas, pois nossos encontros presenciais estavam cancelados e nos questionávamos o que seria de nós e do Femina”. “Foi um momento de tantas incertezas”, reforça Águida. “Com o distanciamento”, diz Vera, “tudo se tornou muito difícil!”. 

Uma sensação de perplexidade tomou toda a comunidade coral, que se sentia despreparada e sequer vislumbrava qualquer outro tipo de existência fora do domínio presencial. A internet, enquanto ferramenta útil para o fazer coral, era, até então, recurso inimaginado pelos regentes e demais profissionais. A inabilidade do ambiente online em fornecer, de forma satisfatória, certos pré-requisitos presentes no ambiente presencial era central. Um dos pontos cruciais era a questão da defasagem do tempo (delay). A atividade musical em grupo exige um recorte temporal eficientemente sincronizado e de altíssima precisão cronológica, fato que o diferencia, por exemplo, de uma conferência, onde um orador fala enquanto todos os demais participantes o escutam. Na prática coral, contudo, várias emissões vocais ocorrem concomitantemente. O sentido da atividade está ancorado nessa premissa. Nas plataformas de interação da internet, contudo, emissões simultâneas produzem uma acústica polifônica desconjuntada, cacofônica. 

Apesar disso, alguns coros aderiram à ferramenta de imediato. Embora cientes de que a internet era inadequada, esses grupos entenderam que ela era, ainda, a alternativa mais viável ou, melhor, a única possível. Para coros de perfis mais juvenis, como os grupos universitários, entre outros, a internet era o destino natural. No que tange ao Fêmina Vox 25, o cantar à distância impunha o domínio de um mundo relativamente complicado, indômito, impenetrável, desprazeroso. Considerando o perfil do grupo, o manuseio do aparato tecnológico era fator desencorajador para a retomada: 

O desconhecimento das ferramentas digitais era completo. Achava que a transição do mundo real para o virtual, sem preparo precedente, seria um grande sofrimento”, relatou Célia. “Pensei em desistir por achar que não conseguiria”, acrescentou Cláudia. “Dominar a tecnologia”, disse Maria Helena, “era [dominar] outra Era. Eu não atinava onde estaria o prazer e a alegria nisso”. “Assimilar as novas formas de trabalho teria impacto bastante forte, exigindo grande esforço e coragem de minha parte”, afirmou Águida. 

Além disso, muitas delas imaginavam que os resultados obtidos, nesse novo formato, seriam insatisfatórios. Não valeria a pena, então, o esforço. Apostando na brevidade do lockdown, elas decidiram “dar um tempo até as coisas melhorarem”. Passados quatro meses, contudo, as projeções para o término do isolamento eram ainda vagas ou pessimistas, deixando as cantoras, segundo as palavras de Cláudia, “cada vez mais inseguras, tristes e desanimadas”. Frente ao impasse, a equipe técnica e artística propôs um plano estratégico de retomada, que consistia no desenvolvimento de um repertório que representificasse momentos potencialmente mais alegres de suas vidas. Foi proposto, também, a simplificação do manuseio da tecnologia, deixando de lado, em um primeiro momento, uma das "novidades" que a prática coral nesse novo ambiente impunha: a produção de vídeos-mosaicos. O processo de construção deles (que passaram a substituir, momentaneamente, o espaço presencial do palco) era bastante complexo e desencorajador, desestimulando as pessoas com maiores dificuldades no manuseio das tecnologias. A intenção inicial dos técnicos era tornar a retomada do grupo menos complexa e mais atrativa possível: “Depois de tantos ‘não consigo, não posso’” (Cláudia) as mulheres decidiram retomar as atividades e aceitar o desafio que as convidava a retornar no tempo para avançar no tempo.

Havia, de um lado, um passado para ser repovoado; de outro, um futuro a ser descoberto.

(continua)

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Trecho 1 do artigo: "Temporalidades e memória em uma experiência coral durante a pandemia", de Luciano Lunkes e Zilá Bernd.
                                                                        (imagem: pixabay.com)





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