* O FEMINA VOX 25 E A JOVEM GUARDA: Em busca de um tempo perdido (texto de Zilá Bernd)

                                                                               (imagem: pixabay)

(continuação)

MEMÓRIAS EM MOVIMENTO 
(Zilá Bernd)

Marcel Proust, no último volume de Em busca do tempo perdido, nos apresenta aquela que talvez seja uma das mais cristalinas definições de memória involuntária, suscitada pela leitura do belo ensaio de François René de Chateaubriand: Memórias do além túmulo, escrito entre 1848 e 1850. O poeta, romancista e ensaísta francês, em suas memórias, alude ao som mágico do trinado de um tordo que o faz voltar no tempo e lembrar da casa paterna onde ouvira o canto desse pássaro. E assim, através de sinestesias deste tipo, Marcel Proust constrói sua monumental obra que pode ser lida, nos dias de hoje, para além de um magnífico romance, também como um compêndio sobre a Memória. 

Ao ouvir o Femina Vox 25 em seus vídeos-mosaicos elaborados durante a pandemia, lembramo-nos dessa passagem de O tempo redescoberto na medida em que as coralistas, ao entoarem canções de seu tempo de juventude, reviveram lembranças e emoções daquela época. Essa revivescência do passado nutriu os longos e solitários tempos pandêmicos povoando os imaginários das cantoras que redescobriram fotografias, joias, roupas e outros objetos daquele período. 

O relato de tão ricas experiências 
vale a pena ser contado. Tempo redescoberto: a música levando o grupo 
a redescobrir seu passado, reatualizando no presente as vivências dos anos de juventude. 

O distanciamento, imposto pela pandemia, revelou a resiliência de cada uma das cantoras que, ajudadas pela experiência coral, ressignificaram, no tempo presente, vivências do período da Jovem Guarda. A ocasião dos ensaios propiciou a troca de lembranças criando uma reconfortante sinergia. Quem assiste aos vídeos realizados pelo regente, de fato se emociona com os sorrisos de cada uma delas, pois elas fizeram o aprendizado da rememoração de suas vivências no âmbito do coletivo. 

Foi recriado um tempo que Deleuze concebeu como Multiplicidade, “uma massa de tempo que é um plano de coexistências virtuais no qual o tempo se conserva como virtualidade a ser atualizada das formas mais diversas. O Acontecimento se daria, portanto, nesse plano transcendental e virtual, em um tempo aiônico, sendo suficiente e eterno” (MARCHESINI, 2007, p. 4). Segundo a leitura que faz essa autora do texto deleuziano: o Aion é a inexistência do presente, sempre disperso em passado e futuro, que abre o tempo ao ilimitado: Aion seria o lugar dos acontecimentos incorporais, dos atributos, dos efeitos. 

Para Marchesini, enquanto Borges faz a refutação do tempo, Deleuze concebe o tempo como não-reconciliado. Ambos à sua maneira foram obcecados pela questão do tempo. Ambos questionaram nossa maneira tradicional de abordar o tempo, desafiando as concepções do tempo como sequencialidade linear. O passado para Deleuze não é um antigo presente. Deleuze fala de uma memória ativa, vitoriosa do esquecimento, representativa, enquanto a memória passiva não se opõe ao esquecimento já que “mergulha no em-si do passado, o passado imemorial que fundamenta qualquer presente” (APUD, MARQUESINI, p. 8). 

No caso das senhoras do coral, foi uma memória ativa, pois resolveram “dar tempo ao tempo” como Kronos, como diz o velho ditado, e se refugiaram nos instantes (Kairos) que a música lhes propiciou. Em O tempo restante; resistência da história e persistência da memória, Pierre Ouellet sustenta que o tempo não passa, ele resiste, insiste e persiste. Ele perdura através da memória: ele nunca será inteiramente esvaziado pelo trabalho do luto, mesmo muito tempo depois. Quando se trata de tempo, não haveria, segundo o autor, um “depois”, mas um “durante” sem fim cuja espessura só se pode medir avaliando o peso da memória, não apenas no curso de uma vida, mas permanecendo de geração em geração. Kairos e Aion marcam a relação direta entre o instante e a eternidade. Kairos – instante oportuno e Aion – perenidade. 

São ambos elencados na mitologia, alados, representando a união entre o céu e a terra, a origem e o fim. Aion é puro devir: um tempo que não existe, mas subsiste e insiste. Seguindo a reflexão de Pierre Ouellet, podemos afirmar que as coralistas aprenderam com a rememoração da Jovem Guarda que os tempos mortos em que vivemos escondem as ressurgências de um mundo em potência que está sempre em situação de ressurgir, dependendo de nossa capacidade de romper com a cronicidade (Kronos) e permitirmos que o tempo se atualize como se fosse o prolongamento do instante em eternidade, ou seja, do momento oportuno (Kairos) em uma perenidade providencial (Aion). O que queremos salientar, em particular e reflexivamente, é o modo como o passado emergiu para aliviar a intensidade das tintas mais carregadas e escuras do presente, levando essas mulheres a fluir novamente. 

Para driblar um presente inconveniente, as coralistas lançaram seus dados sobre o tabuleiro do tempo. Encontraram, ao reabitar fragmentos de seus passados perdidos, um novo modo de cantar e existir no futuro. 

Lembrando os ensinamentos de Maurice Halbwachs: nunca rememoramos de forma solitária. A memória coletiva tira sua força e sua duração por ter como base um conjunto de pessoas, enquanto integrantes de um grupo. Dessa massa de lembranças comuns, umas apoiadas nas outras, não são as mesmas que aparecerão com maior intensidade a cada um deles. De bom grado diríamos que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva. (HALBWACHS, 2003, p. 69) 

Assim, podemos afirmar que se a “intuição sensível” de cada integrante do grupo viajou em “busca do tempo perdido”; o tempo reencontrado se deu coletivamente, devido à sinergia criada não só por fazer parte de um grupo, mas pela proposta de revisitar canções do passado. Canções de um passado conhecido por todas as componentes do coral foram evocadas: ao intercambiar suas lembranças, porém, aprenderam que elas não podem ser revividas. Tiveram que reinventá-las no tempo presente dos ensaios. Esse é o um dos grandes enigmas da memória: não há o que “buscar”, e esta é a importante lição de Marcel Proust, embora seu livro se intitule Em busca do tempo perdido. Os vestígios memoriais que vão surgindo ao ritmo das melodias, precisarão ser reinterpretados no momento atual de suas vidas. Ao entoarem as melodias, passado e presente irão de sobrepor no movimento contínuo da Memória. 

Vale ainda mencionar que o conceito abordado por Aleida Assmann, de memória habitada ou funcional, cabe perfeitamente para definir a experiência da equipe do Femina Vox 25. Para a autora “Memória funcional (ou habitada), como um espaço de recordação iluminado por igual, pode assumir a figura de um thesaurus, um cânone formativo, um panteão. Como um objeto vinculativo do aprender e do interpretar, essa memória tende a ver-se legada à geração seguinte” (2009, p. 438). 

Podemos concluir, com a frase final de Assmann em seu livro Espaços de recordação, ao parabenizarmos essas mulheres corajosas que aceitaram o desafio do novo e aderiram à aventura tecnológica proposta pelo regente Luciano Lunkes e pela professora de canto Regina Machado Schaumlöffel. A depressão face à pandemia e a angústia de terem que abandonar sua atividade no coral, deixou-as em um primeiro momento sem alternativas. Contudo, resíduos memoriais de tempos mais auspiciosos foram evocados, fazendo ressurgir um Fêmina Vox 25 ainda mais vibrante: É assim com a recordação: mesmo quando a negligenciamos, nem por isso ela nos deixa por muito tempo (ASSMANN, 2009, p. 442)

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(imagem: pixabay)


Trecho 4 do artigo: "Temporalidades e memória em uma experiência coral durante a pandemia", de Luciano Lunkes e Zilá Bernd.





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